domingo, 16 de março de 2014

Uma Rua e Cem saídas



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Uma Rua e Cem Saídas
Cláudia Coelho
Final de semana passado, eu dirigia rumo ao aeroporto e percebi uma cena inquietante. Havia famílias reunidas no meio-fio do corredor de ônibus, algumas crianças andando de bicicleta, mulheres e homens correndo no asfalto. Bacana essa cena, não fosse o local! Um corredor de ônibus fechado disponibilizando aos frequentadores daquela área nada mais do que o asfalto, monóxido de carbono, pista livre e segura aos pedestres. E, como se não bastasse, “um lugar ao sol” àqueles que pretendiam se bronzear.
Fiquei imaginando uma daquelas pessoas descrevendo o seu final de semana:  “ Foi superbom lá no corredor de ônibus, nos divertimos muito!”. Mas será que elas não teriam alternativa melhor? Pela  lógica, aqueles que possuem melhor poder aquisitivo deveriam ter mais opções de  lazer. Como alguém que mora num bairro nobre de Porto Alegre poderia se contentar em passear num corredor de ônibus aspirando monóxido de carbono? Nem em São Paulo eu aceitaria essa opção.
Eu me vi sem saída para explicar aquele fenômeno e me reportei imediatamente à Rua C, como era chamada nas décadas de 70 e 80. Ainda pode-se dizer que é uma rua tranquila, mas era muito mais no passado. Ao contrário daquele corredor de ônibus cravado numa avenida tumultuada, a Rua C oferecia  um sem número de possibilidades e entretenimentos. 
A Rua era tão pacata que estendíamos uma rede de vôlei de uma calçada a outra. O jogo de taco também era realizado com latas de azeite enfiadas nos pequeninos buracos da rua. Ao fundo, tínhamos uma espécie de parquinho natural, era uma “saibreira” que acolhia nossas expedições em grupos, além de muitas histórias misteriosas relembradas até hoje.
À noite, a Rua C abrigava penumbras mágicas perfeitas para o esconde-esconde. Os patins viravam sapato e tinham as rodas desgastadas das calçadas inapropriadas, mas que eram perfeitas para as meninas jogarem sapata.  A brincadeira de corda não podia ser melhor quando espichávamos a corda de uma calçada a outra e rolávamos de rir quando o foguinho testava os mais rápidos no pulo.  A Rua C adorava ver crianças  jogando  bola e passeando de bicicleta com cata-ventos de seringueira pendurados no guidão. 
Dia de chuva não podia ser melhor, tomar banho de chuva, escorregar nos pisos lisos das casas, dar risada dos tombos, torcer para a rua alagar! E, quando a chuva parava, a brincadeira seguia. Corríamos para os filetes de água no meio-fio da calçada com nossos barquinhos de papel para ver quem chegava primeiro no bueiro insólito.
A Rua C não cabia no calendário de tantos aniversários, e, para sorte da criançada, as quituteiras da rua sempre foram maravilhosas. O barulho das festas na rua nunca foi motivo de desavença, até porque  os vizinhos sabiam que, no futuro, também fariam seu barulho de festa, sempre foi assim.
A Rua sem saída era uma rua que acolhia diferenças sociais, dramas familiares, mas também muitos amores. Amores juvenis livres de qualquer preconceito, amores que  viraram casamento e outros que não passaram de um beijo.
A Rua C, não julgava, mas, por vezes, se ressentia com a severidade de alguns pais e com a indolência de alguns filhos.
Mas a Rua C também chorou muitas vezes.  Apesar de ser uma rua de paralelepípedos desiguais, o trânsito, sem cintos e muito álcool, tirou a vida de muitos amigos. A Rua C lutou pela vida de muitos que se acidentaram, e venceu,  mas perdeu  quando a medicina ainda não encontrava a cura. 
A Rua C debutou com as meninas que se tornavam mulheres. E vibrou com as labaredas das fogueiras de São João e a dança do pau de fita nas escolas da redondeza.
Alguns podem achar  que essa rua nunca existiu, pois eu a vejo dessa forma. E hoje, de fato, ela não existe mais, a Rua C ganhou um nome difícil de um ilustre médico, mas pouco conhecido. Ao contrário da Rua C, de tão escondida, parece ficar na memória de quem a conheceu: “Ah! Aquela Rua sem saída?”.  
Sem saída? Creio que não. A Rua C ofertou cem saídas para suas crianças, mil maneiras de ensinar seus adolescentes e infinitas formas de se reinventar para os seus adultos e idosos.
Eu confesso que, na minha infância, sempre sonhei que a Rua C só iria crescer quando fosse asfaltada, mas isso nunca aconteceu.  Mas, se essa rua fosse minha...
“ Eu mandava ladrilhar com pedrinhas de brilhantes...”

Um comentário:

  1. Não conheci a maravilhosa Rua C que você retrata com tanto saudosismo. Na minha época de criança – em São Leopoldo – existiam vários espaços de laser que hoje, simplesmente, desapareceram consumidos pela indústria imobiliária. “O espaço para o lazer é o espaço urbano” diz Marcellino em sua obra Estudos do lazer: uma introdução. O autor aborda o tema na sua visão de educador físico ao tratar do assunto esporte. Numa visão política Lima, Oliveira e Maia afirmam que: “o lazer no espaço urbano deve ser entendido como de fundamental importância no que se refere a compreender os espaços públicos como necessários para o encontro e o convívio social, o que possibilita uma vida melhor para todos”. Dentro dessa concepção e falta de atrativos de melhor qualidade, cidades como Brasília e Porto Alegre, entre outras, adotaram o asfalto como opção para aqueles que não querem, ou não podem, utilizar os parques e clubes. Porto Alegre – nesse ponto – é uma capital privilegiada, pois temos locais de ótima qualidade. A SMAM informa que administra (por vezes parece que não administra) 9 parques em Porto Alegre: Marinha do Brasil; Chico Mendes; Maurício Sirotsky Sobrinho (Harmonia); Farroupilha (Redenção); Gabriel Knijinik; Marechal Mascarenhas de Moraes; Moinhos de Vento (Parcão); Parque Alemanha (Germânia). A Carta Internacional de Educação para o Lazer de 1983 afirma que: “Lazer é um direito humano básico, como educação, trabalho e saúde, e ninguém deverá ser privado deste direito por discriminação de sexo, orientação sexual, idade, raça, religião, credo, saúde, deficiência física ou situação econômica”. A Constituição da República Federativa do Brasil também defende a ideia de lazer como direito social, como é visto nos artigos 6º e 217:
    Art. 6° São direitos sociais a educação, a saúde, a alimentação, o trabalho, a moradia, o lazer, a segurança, a previdência social, a proteção à maternidade e à infância, a assistência aos desamparados, na forma desta Constituição [...]
    Art. 217, § 3° O poder público incentivará o lazer, como forma de promoção social. Minha rua C é o Parcão. Para lá seguidamente me dirijo a fim de caminhar e apreciar a natureza. Quanto ao lazer no asfalto, estou com você: “Nem em São Paulo aceitaria essa opção”. Ou como diria aquela senhora da propaganda da Sadia: “Nem a pau Juvenal”.

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