Que orgulho eu sinto da minha cidade, quando vejo as
bicicletas laranjinhas humanizando o trânsito de um lado a outro. As ciclovias pareciam
um sonho inalcançável, mas, de grão em grão, as vias pintadas de vermelho vão nos enchendo de satisfação.
Porém, este sonho que se avizinha exige bom senso e ótimos
itens de segurança. Atuando como perita do
trânsito há mais 15 anos, tenho lá minhas convicções. Uma delas é de que a CNH
de carros deveria ser pré-requisito para a carteira de motocicletas. O
motivo? Eu chamo de “ princípio da empatia”. Imprescindível, além do estudo
teórico, ele deveria compreender na prática como o motorista percebe o
motociclista.
Outra convicção defendida por mim é de que o conhecimento
prévio das vias urbanas contribui à
segurança do ciclista. Para tanto, eu arriscaria dizer que o ciclista que é
motorista teria menos risco de acidentes.Mas ser ciclista seria um pré-requisito desejável para quem quer dirigir uma moto?
Esse pré-requisito eu não defendo nem por decreto. Outro dia
um senhor de uns 60 anos e lá vai pico queria obter sua primeira carteira de
moto. Eu questionei se não seria arriscado, e ele foi explicando que já andava
de bicicleta há anos!
Olhei incrédula para ele e sapequei no automático, “o senhor
tem noção de que não é só uma questão de equilíbrio?”. Ele ia me interromper,
mas eu continuei “e mais, o senhor já imaginou uma moto cair em cima da sua
perna? É bem diferente de uma bicicleta, não?”. Ele concordou com preocupação.
“E tem mais uma coisinha, uma fratura na
sua idade terá uma repercussão na sua vida diferentemente, se isso ocorresse
com um jovem”.
Depois de todo esse discurso, ele retrucou, “doutora, a
senhora pode ficar tranqüila que eu vou me cuidar”. Naquele momento, comecei
acreditar que otimismo é o pré-requisito
da teimosia!
Mas quem sou eu para falar da teimosia?
Aos 16 anos de idade, meu pai me ofertou uma bike nova. Ele foi categórico, se eu
quisesse a bike teria que pegá-la no
centro da cidade e levar até a minha casa, uns 13 km. Minha mãe queria me matar
quando eu disse que topava. Peguei a magrela meio desajeitada, ali na Dr.
Flores, ladeira acima, lá me fui para a aventura.
Pela primeira vez
senti as reais distâncias da cidade, era como se o trânsito fosse o pátio da
minha casa. Eu tinha muitos kms pela
frente, mas era como se tudo fosse mais perto!
Quando eu me lembrei dessa história,
a minha mãe comentou “aquele dia
tu quase me matou de preocupação”. Realmente, naquela época era muita distância
para uma menina andar sozinha de bicicleta.
A primeira aventura de bike
a gente até pode esquecer, mas o primeiro equilíbrio e o primeiro tombo são
inesquecíveis!
O primeiro equilíbrio foi numa Caloi azulzinha. Friozinho na
barriga, mágica em duas rodas! Guidão frenético, eu adorando! Mas só pensando
em me escorar no primeiro muro.
A minha rua era uma vitrine, pois todos ficavam brincando até tarde. Por essa razão, todos sabiam quem estava no domínio de sua bike. Então não é de se admirar que
alguém tenha visto o meu tombo memorável...
O pequeno acidente foi um grande dilema. Ou eu acertava a
avó de uns vizinhos, ou eu acertava uma árvore. A vovó magrinha, pernas finas e
trêmulas, mais parecia eu iniciando as minhas primeiras pedaladas hesitantes.
Ela ia ziguezagueando bem à minha frente na calçada. Eu era iniciante em equilíbrio e
vidência!
Arrisquei. Mas a vovozinha me surpreendeu com uma manobra.
Não deu outra, dei de cara na árvore, arranquei galho, esfolei os joelhos,
parei no meio da rua, escabelada e muda. Olhei para os lados, procurando um
alcoviteiro de plantão, olhei para trás e suspirei aliviada ao ver a vovó
andando sem ter percebido nada!
Mas os melhores tombos eram promovidos pelos meninos!
Derrapar no areão de um lado a outro da rua exigia destreza
e domínio. Naquele dia, um menino que tinha uma bicicleta Yamaha, resolveu se
arriscar pela primeira vez. Mas ele não tinha vocação para aquilo, deu um
cavalinho de pau de levantar poeira na rua e, coitado, se estrebuchou no chão.
Enquanto a gente via ele se recompor, a mãe dele, enfezada, ameaçava surrá-lo
pela feita vexatória e arriscada!
Semana passada alguém teve o atrevimento de me ofertar uma
grana pela minha bike! Como assim?
Que desaforo! Essa pessoa não sabe que a minha bike é sagrada?
Pela ofensa a mim e a minha bike querida, resolvi dar um upgrade
na magrela, pensei em personalizá-la com a minha arte! Cada pincelada de azul
cobalto me fez relembrar de todas essas histórias e conclui que as bicicletas
sempre foram emblemáticas na minha vida.
Ao ver a bicicleta renovada, me deparei com a promessa de
novas pedaladas. Naquele momento compreendi
que ser ciclista é um bom pré-requisito para o exercício da liberdade!