sábado, 31 de agosto de 2013

Pré-requisito para a liberdade

Que orgulho eu sinto da minha cidade, quando vejo as bicicletas laranjinhas humanizando o trânsito de um lado a outro. As ciclovias pareciam um sonho inalcançável, mas, de grão em grão,  as vias pintadas de vermelho vão nos  enchendo de satisfação.

Porém, este sonho que se avizinha exige bom senso e ótimos itens de segurança. Atuando  como perita do trânsito há mais 15 anos, tenho lá minhas convicções. Uma delas é de que a CNH de carros deveria ser pré-requisito para a carteira de motocicletas. O motivo? Eu chamo de “ princípio da empatia”. Imprescindível, além do estudo teórico, ele deveria compreender na prática como o motorista percebe o motociclista.
Outra convicção defendida por mim é de que o conhecimento prévio das vias urbanas  contribui à segurança do ciclista. Para tanto, eu arriscaria dizer que o ciclista que é motorista teria menos risco de acidentes.

Mas ser ciclista seria um pré-requisito desejável para quem quer dirigir uma moto?
Esse pré-requisito eu não defendo nem por decreto. Outro dia um senhor de uns 60 anos e lá vai pico queria obter sua primeira carteira de moto. Eu questionei se não seria arriscado, e ele foi explicando que já andava de bicicleta há anos!
Olhei incrédula para ele e sapequei no automático, “o senhor tem noção de que não é só uma questão de equilíbrio?”. Ele ia me interromper, mas eu continuei “e mais, o senhor já imaginou uma moto cair em cima da sua perna? É bem diferente de uma bicicleta, não?”. Ele concordou com preocupação. “E  tem mais uma coisinha, uma fratura na sua idade terá uma repercussão na sua vida diferentemente, se isso ocorresse com um jovem”.
Depois de todo esse discurso, ele retrucou, “doutora, a senhora pode ficar tranqüila que eu vou me cuidar”. Naquele momento, comecei acreditar que otimismo é  o pré-requisito da teimosia!
Mas quem sou eu para falar da teimosia?
Aos 16 anos de idade, meu pai me ofertou uma bike nova. Ele foi categórico, se eu quisesse a bike teria que pegá-la no centro da cidade e levar até a minha casa, uns 13 km. Minha mãe queria me matar quando eu disse que topava. Peguei a magrela meio desajeitada, ali na Dr. Flores, ladeira acima, lá me fui para a aventura.
Pela primeira vez senti as reais distâncias da cidade, era como se o trânsito fosse o pátio da minha casa. Eu tinha muitos  kms pela frente, mas era como se tudo fosse mais perto!  Quando eu me lembrei dessa história,  a minha mãe comentou  “aquele dia tu quase me matou de preocupação”. Realmente, naquela época era muita distância para uma menina andar sozinha de bicicleta.
A primeira aventura de bike a gente até pode esquecer, mas o primeiro equilíbrio e o primeiro tombo são inesquecíveis!
O primeiro equilíbrio foi numa Caloi azulzinha. Friozinho na barriga, mágica em duas rodas! Guidão frenético, eu adorando! Mas só pensando em me escorar no primeiro muro.
A minha rua era uma vitrine, pois todos ficavam brincando até tarde. Por essa razão, todos sabiam quem estava no domínio de sua bike. Então não é de se admirar que alguém tenha visto o meu tombo memorável...
O pequeno acidente foi um grande dilema. Ou eu acertava a avó de uns vizinhos, ou eu acertava uma árvore. A vovó magrinha, pernas finas e trêmulas, mais parecia eu iniciando as minhas primeiras pedaladas hesitantes. Ela ia ziguezagueando bem à minha frente na calçada. Eu era  iniciante em equilíbrio e vidência!
Arrisquei. Mas a vovozinha me surpreendeu com uma manobra. Não deu outra, dei de cara na árvore, arranquei galho, esfolei os joelhos, parei no meio da rua, escabelada e muda. Olhei para os lados, procurando um alcoviteiro de plantão, olhei para trás e suspirei aliviada ao ver a vovó andando sem ter percebido nada!

Mas os melhores tombos eram promovidos pelos meninos!
Derrapar no areão de um lado a outro da rua exigia destreza e domínio. Naquele dia, um menino que tinha uma bicicleta Yamaha, resolveu se arriscar pela primeira vez. Mas ele não tinha vocação para aquilo, deu um cavalinho de pau de levantar poeira na rua e, coitado, se estrebuchou no chão. Enquanto a gente via ele se recompor, a mãe dele, enfezada, ameaçava surrá-lo pela feita vexatória e arriscada!  

Semana passada alguém teve o atrevimento de me ofertar uma grana pela minha bike! Como assim? Que desaforo! Essa pessoa não sabe que a minha bike é sagrada?
Pela ofensa a mim e a minha bike querida, resolvi dar um upgrade na magrela, pensei em personalizá-la com a minha arte! Cada pincelada de azul cobalto me fez relembrar de todas essas histórias e conclui que as bicicletas sempre foram emblemáticas na minha vida.

Ao ver a bicicleta renovada, me deparei com a promessa de novas pedaladas. Naquele momento compreendi  que ser ciclista é um bom pré-requisito para o exercício da liberdade!