domingo, 17 de setembro de 2017

Sob o Olhar da Lanceira Negra




Lanceira Negra da artista Silvia Marcon 2017
Situação da obra após a desocupação.
Numa conversa sobre as ocupações públicas feitas com o Mosaico. Ocorreu-me que, apesar de serem instaladas nas ruas e darem impressão de que o artista  não se vincula às mesmas, ainda assim é uma obra que se materializa, e que se atrela ao conceito de Monumento. E de certa forma, conclui que, nós mosaicistas, ainda estamos longe de executar obras tão transitórias, como são as Estátuas de Gelo.

Eu me recordava da artista mineira Néle Azevedo, adepta do Movimento Antimonumento. Ela faz intervenções, em lugares públicos, que intrigam o olhar.

Este ano numa mostra em SP, a artista reuniu as obras de seus 10 anos de intervenção, num local refrigerado obviamente. Mas o que surpreendeu, foi ter construído uma de suas estátuas com o seu próprio sangue. “Achei que precisava usar o meu sangue, porque eu não tinha palavras suficientes para falar disso. Eu não sabia que a história se repetia desse jeito, esse fechamento em relação à liberdade humana”. (Néle Azevedo)

Semana passada ao ver a obra da Lanceira Negra, da amiga mosaicista Silvia Marcon, percebi que as palavras poderiam ser insuficientes para dizer o que eu enxergava. Mesmo assim, eu me decidi escrever sobre as tristes histórias se repetem.


A obra da artista gaúcha, foi realizada no prédio ocupado por 70 famílias do Movimento de Lutas nos Bairros,Vilas e Favelas. A ocupação ampara-se na Lei 10.257/2001 do Estatuto das Cidades, que autoriza o poder público a desapropriar imóveis que estão em desuso, para fins de moradia.

Chamada de "Ocupação Lanceiros Negros", elegeu este nome em homenagem ao Massacre dos Porongos. Chacina ocorrida há 160 anos contra homens negros que lutaram por liberdades e que foram excluídos da história do Rio Grande do Sul.  

Ainda pensando na imagem vandalizada da Lanceira Negra, pensei em todos guerreiros desprotegidos e que são traídos em suas expectativas. Pensei no escravo que um dia se encorajou numa luta, sem saber que era contra ele mesmo que lutava. Pensei na artista mineira,  e do pouco sangue que temos vertido em nossas veias, para construir a solidez de uma Nação. O seio é tão significativo, agora mutilado da Lanceira,  me faz refletir sobre a escassez de afeição, proteção e igualdades.

Foto: Evandro Leal. 14/06/2017
Noite da retirada das famílias.
Policiais vigiam a entrada.
Na noite de 14 de junho de 2017, cerca de 200 lanceiros foram massacrados novamente. Retiraram-lhes o peito e a lança!

E a história se repetiu, sob o olhar da Lanceira Negra.
E sob o olhar de todos nós...
A imagem rígida de pedras, bem sabia que as grades seriam rompidas. Um guerreiro que se preza, jamais é traído pela sua memória. 

E mais uma vez a violência aprisionou o agressor, e libertou quem resistia, apesar da luta perdida.

A Lanceira Negra perdeu a estética do mosaico.
As Estátuas de Gelo se perdem em 35 minutos.
Não importa quanto tempo uma obra permanece intacta, seja ela de pedra, de água, ou de concreto abandonado.

O que importa realmente é que "A Obra" seja vista Sob o Olhar do Humano.




Saiba mais:
http://www.ufrgs.br/ensinodareportagem/cidades/lanceirosnegros.html

https://g1.globo.com/rs/rio-grande-do-sul/noticia/moradores-retirados-de-predio-no-centro-de-porto-alegre-deixam-abrigo-temporario.ghtml